sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A Beleza e seus infelizes


Ao ocupar o lugar dos valores morais e éticos, a busca da perfeição corporal é confundida com felicidade e realização, gerando grandes frustrações. Quem lucra com essa inversão das prioridades humanas é a milionária indústria da beleza.


Toda mulher pode ser bonita. Bastam 15 minutos diários e 5 dólares ao ano em creme facial. "Helena Rubinstein fez esta afirmação em 1902, ao lançar na Austrália seu Crème Valaze, produto que inaugurou o primeiro e um dos maiores impérios do setor de beleza, consolidado a partir de 1915, quando a empresária mudou-se para Nova York, onde viveu milionária numa cobertura decorada com obras de Dalí, Matisse e Picasso.


Já vai um século desde que Rubinstein fez essa propaganda enganosa. Desde então, a milionária indústria alimentada pelo sonho da beleza só fez crescer. É um negócio que movimenta bilhões de dólares por ano em todo o planeta. A receita dessa indústria no Brasil, contando apenas produtos de higiene, cosméticos e perfumaria, foi de 7,5 bilhões de reais no ano passado, quase 14% mais que os 6 ,6 bilhões de reais de 1999.


Desde o começo dos anos 90, circulou 73% mais dinheiro nesse setor no Brasil. Apenas a Avon, líder mundial em venda direta de cosméticos, teve aqui faturamento de 1,9 bilhão de reais em 2000. Com sede em Nova York e dezoito fábricas em quinze países, a empresa tem faturamento líquido de 5,7 bilhões de dólares ao ano.


No campo das intervenções cirúrgicas com fins estéticos o Brasil só perdeu, em 1999, para os EUA. Em 1994 foram 5 mil cirurgias plásticas em jovens entre 15 e 25 anos. Em 1999, subiram para 30 mil. Crescimento vertiginoso de 600%. No ano passado, foram mais de 400 mil cirurgias plásticas, a ponto de os que lucram com as ilusões alheias aguardarem a aprovação do Banco Central para consórcios desse tipo de cirurgia.


Na área de suplementos alimentares (que a maioria consome mais com preocupações estéticas que de saúde) os números também são altos. Esse mercado tem receita anual de 17 bilhões de dólares nos EUA e de 1,5 bilhão de reais no Brasil.


Relações entre peso e beleza também revelam a dimensão da histeria estética. Vinte anos atrás uma top model pesava 8% menos que a média das mulheres. Hoje a diferença saltou para 25%. Em estudo recente, a pesquisadora americana Patricia Owen concluiu que quase metade das mulheres da Playboy e um terço das 500 modelos pesquisadas em sites de agências estavam dentro dos critérios internacionais de desnutrição e de peso perigosamente reduzido.


A obsessão pela aparência é hoje uma das principais causas de estresse e ansiedade, tornando infelizes e deprimidas pessoas saudáveis que não atingem o padrão de beleza que a sociedade exige. Beleza inalcançável, já que especialistas afirmam que parcela mínima da população mundial (entre 5% e 8%) tem estrutura física para tanto.


A historiadora Mary Del Priore resume o desatino dessa cultura narcisista. "Com a tirania da perfeição física, todos querem participar da sinfonia do corpo magnífico, quase atualizando a intolerante estética nazista. Numa sociedade de consumo, a estética surge como motor do bom desenvolvimento da existência, e a feiúra é vivida como um drama."


E um drama de resultados sinistros. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a bulimia e a anorexia são as principais causas de morte de mulheres jovens (entre 11 e 20 anos) em todo o mundo. De cada dez casos, dois são fatais. São doenças próprias de um mundo devotado à superficialidade. O bulímico ingere grande quantidade de comida para depois provocar o vômito que o livrará da nutrição indesejável. O anoréxico é dominado por um medo intenso de engordar mesmo estando extremamente magro, e por isso se submete à fome contínua. Nos Estados Unidos, uma em cada 100 meninas é anoréxica. No Brasil, uma em cada 250.


Recentemente pesquisadores entrevistaram 548 meninas de 11 a 18 anos em Boston, EUA. Mais de dois terços admitiram ver modelos como Kate Moss e Claudia Schiffer como padrões de beleza. Apenas 29% estavam acima do peso, mas 66% queriam emagrecer. Metade declarou ler revistas de moda de duas a cinco vezes por mês, além de manifestar desejos estéticos irreais para as possibilidades de seus corpos.


A historiadora Joan Jacob Brumberg, em seu The Body Project - An Intimate History of American Girls, relatou as angústias e traumas das jovens americanas com a própria aparência desde 1830. "A diferença é que, no século passado, as garotas não organizavam suas vidas em torno de seus corpos. Hoje há uma substituição do bom comportamento pela boa aparência."


Brumberg corrobora a afirmação com dois trechos retirados de diários de adolescentes. Em 1892, uma menina prometia obrigar-se a "não falar sobre mim ou meus sentimentos, pensar antes de falar, trabalhar seriamente, ser contida em conversas e ações, não deixar meus pensamentos vagarem e me interessar mais pelos outros". Em 1982, as promessas de outra adolescente foram bem diferentes. "Perderei peso, comprarei novas lentes, terei um novo corte de cabelo e roupas novas."


Uma pesquisa sobre a revista Nova, realizada pela antropóloga Lara Deppe, ajuda a entender o crescimento vertiginoso da indústria da beleza. Mostra como se construiu socialmente a legitimação das preocupações com o corpo e a beleza. O que antes era futilidade, virou causa de vida e morte. "Na década de 70, médicos e cientistas mostravam nas páginas da revista a importância da beleza física para manter a saúde mental. O cuidado com a aparência foi cientificamente justificado, migrando do terreno da vaidade para o da necessidade física e mental".


Antes atributo da natureza, agora a beleza deve ser conquistada, e é necessário gastar muito para isso. Exemplo dessa mudança de mentalidade é a gaúcha Juliana Borges, que passou por dezenove cirurgias plásticas antes de tornar-se miss Brasil 2001.
A indústria da beleza vive e prospera num vácuo emocional e espiritual que o pensador norte-americano Cornel West chamou de "grande desesperança". É o culto ao invólucro tornando-se o próprio sentido da vida. Vencido o ideal de busca de equilíbrio entre corpo e mente, restou apenas o corpo, instaurando-se a corpolatria. Há estreita ligação entre busca da beleza e frustração sexual, tal como estudada por Wilhelm Reich, para quem nossa miséria sexual era o maior dos nossos males. Ser belo é ter acesso ao sexo que se deseja, é a mensagem subliminar mais comum nas propagandas.


O culto à beleza também incentiva sentimentos pedófilos. São inúmeras as meninas que vendem sua imagem para revistas e tevês, desfilando corpos virginais por passarelas do Brasil e do mundo. Exemplo é a catarinense Poliane Marcel, que recentemente debutou no São Paulo Fashion Week com 13 anos, idade mais apropriada para estar num banco escolar.


Segundo a cientista e psicóloga Nancy Etcoff, a busca da beleza não é uma construção cultural, tampouco uma invenção do mundo da moda, mas parte essencial da natureza humana, fato pelo qual todas as civilizações reverenciaram a beleza, perseguindo-a com mais ou menos ênfase. Isso é fato. A diferença é que a beleza nunca foi tão fundamental quanto hoje, e nunca uma indústria valeu-se de modo tão ostensivo do desejo profundo das pessoas em se identificar com o que há de mais belo segundo os padrões vigentes.


Na Idade Média, por exemplo, os níveis de exigência estética em relação à mulher eram bem baixos. Apenas com o Renascimento o ideal greco-romano de beleza voltou a vigorar e foi se construindo uma cultura em que a beleza tem lugar preponderante, para atingir o ápice em nossa atual sociedade de consumo. E nunca a beleza esteve tão inserida num contexto de luta darwinista pela sobrevivência como agora, em que ser belo é ter maiores chances de vitória na vida. Seja de que modo for e a qualquer preço.


Recentemente, a promotora de Justiça Luiza Nagib Eluf escreveu artigo apontando para o grande poder dos meios de comunicação globalizados de influenciar pessoas e gerar obsessões coletivas, como a de buscar uma beleza inatingível. "Com a neurose estética, a vida perde sentido. Os neuróticos agem como se a felicidade, o amor, a emoção, tudo dependesse exclusivamente do corpo e de sua adequação aos padrões de beleza impostos globalmente. Mas por mais que se cuide da aparência física, o ser humano reflete o que lhe vai no interior, e não há maquiagem que embeleze uma alma atormentada." A indústria da beleza sabe perfeitamente disso, mas jamais tocará no assunto ao fazer suas propagandas enganosas.
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